Total de visualizações de página

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Países da América Latina precisam gastar mais para enfrentar recessão


"Países da América Latina precisam gastar mais para enfrentar recessão"
No Brasil, o pacote emergencial anticoronavírus corresponde a cerca de 3% do PIB

Para minimizar os efeitos da crise do coronavírus, governos deveriam investir 5% do PIB em medidas para estimular economia, financiar saúde pública e apoiar os que perderam seus meios de subsistência, defende economista.


A crise econômica decorrente da pandemia de covid-19 será especialmente dolorosa para os países da América Latina, que entram nessa recessão fragilizados após meia década de baixo crescimento e alta na dívida pública.

Para minimizar os efeitos da crise, esses países deveriam ser mais ambiciosos e investir cerca de 5% do PIB em medidas para estimular a economia, financiar a saúde pública e apoiar os que perderam seus meios de subsistência – um patamar de gastos que, no continente, somente o Chile chega perto de alcançar; no Brasil, o pacote emergencial corresponde a cerca de 3% do PIB e, na Colômbia, 1,5%.

A análise é do economista José Antonio Ocampo, professor da Universidade Columbia, em Nova York, presidente do Comitê sobre Políticas de Desenvolvimento do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas e ex-ministro da Economia da Colômbia.

À DW Brasil, ele reconhece que os países latino-americanos têm um espaço fiscal limitado para agir, mas diz que agora "não é hora para austeridade" e que a meta de investir 5% do PIB em medidas emergenciais já é bastante inferior ao patamar adotado por países desenvolvidos para enfrentar a crise, de cerca de 10% do PIB.

Diante da atual escassez de financiamento privado internacional e das limitações de bancos multilaterais, Ocampo sugere que os países recorram ao endividamento doméstico, como a emissão de papéis do Tesouro de curto ou médio prazo, e apoia que os próprios bancos centrais comprem títulos da dívida, iniciativa que, no atual contexto, não traria risco de inflação, segundo ele.

Depois que a recessão for superada, porém, ele afirma que os países da América Latina terão que analisar como equilibrarão suas contas novamente. Além disso, deveriam "pensar seriamente em promover algum tipo de reindustrialização como estratégia de desenvolvimento" e "buscar uma integração regional mais ativa".


DW Brasil: Como o sr. avalia a reação de países da América Latina para enfrentar a crise econômica provocada pela pandemia?


As iniciativas dos bancos centrais para aumentar a liquidez [disponibilidade de dinheiro no mercado] foram mais completas do que as iniciativas fiscais [aumento de gastos do governo].

Porém, a reação fiscal é limitada pelo fato de que o espaço fiscal dos governos para atuar está limitado. E eles estão sob pressão das agências de classificação de risco, que estão reduzindo a nota de avaliação de países na América Latina. Essas agências estão jogando duro ao pedir que os países limitem seus gastos em vez de aumentá-los, que é o que é necessário fazer agora.

Agora não é a hora para austeridade. A demanda privada colapsou, não há investimento, e as pessoas não podem consumir. A única fonte de demanda são os gastos do setor público, e não é nem para promover uma expansão, mas apenas para evitar uma recessão ainda mais forte.


O valor dos pacotes de emergência anunciados na América Latina é adequado?


A maioria dos programas fiscais que vi são pequenos e deveriam ser ampliados. No caso da Colômbia, é de cerca de 1,5% do PIB. Diversos ex-ministros da economia [da Colômbia], incluindo eu, pediram algo em torno de 5% do PIB. O único país que está perto disso é o Chile [com 4,7% do PIB]. O Brasil é o segundo [com cerca de 3% do PIB].
 
Esse patamar de 5% do PIB já é bem abaixo do que vem sendo praticado por países desenvolvidos, que têm destinando o dobro disso, em torno de 10% do PIB. [Na Alemanha, as medidas de estímulo anunciadas consumirão cerca de 10% do PIB, nos Estados Unidos, 11%, e no Japão, 20%].


Como países latino-americanos devem financiar esses pacotes de emergência?


O financiamento privado internacional será uma opção muito limitada – ele praticamente colapsou, e as taxas de juros aumentaram.

Os bancos multilaterais de desenvolvimento estão oferencendo financiamento adicional. Mas teriam que elevar ainda mais o que já ofereceram. De qualquer forma, será uma fonte limitada.

Temos que pensar mais em financiamento doméstico. Uma forma, que é bastante ativa no Brasil, é usar papéis do Tesouro, de curto ou médio prazo, para financiar o aumento do déficit.

Mas não rejeito a possibilidade de os bancos centrais também os financiarem, por meio da compra de papéis do Tesouro, diretamente do governo ou no mercado secundário. No curto prazo, há uma demanda imensa por liquidez e por dinheiro dos bancos centrais, então não acho que esses programas provocariam pressão inflacionária.


Depois que a crise passar, há risco de que esse esforço emergencial faça a dívida pública sair do controle nesses países?


As economias latino-americanas enfrentam duas restrições, relacionadas a eventos que ocorreram antes da crise.

A primeira é que elas não cresceram com força nos últimos cinco anos. Houve uma meia década perdida. Desde 2014 o crescimento tem sido lento, e alguns países estiveram em recessão, como o Brasil.

A segunda são as condições fiscais. O déficit e a dívida do setor público no ano passado eram significativamente maiores do que os de 2008 [quando houve a crise financeira]. Então a capacidade de promover expansão fiscal para enfrentar a recessão é mais limitada agora do que era antes.

Após esta crise ser superada, a situação fiscal será mais grave, e o Brasil é um caso importante, pois já está com uma dívida alta. Os países terão que analisar como vão gerenciar o seu ajuste fiscal.


No que mais eles deverão pensar para estimular a economia após a crise?


Na minha opinião, eles devem pensar seriamente em promover algum tipo de reindustrialização como estratégia de desenvolvimento.

Além disso, como o comércio internacional será fraco adiante, os países da América Latina deveriam buscar uma integração regional mais ativa. Claro que isso não é fácil, há muitas diferenças políticas, mas há também diversas possibilidades para aprofundar o comércio regional e fortalecer cadeias de valor regionais.

 
Países da América Latina são, em regra, dependentes da exportação de commodities. Como isso os afeta neste momento?


O grande problema são as economias que dependem do petróleo e da mineração. Há uma guerra do petróleo em curso, e a Rússia está relutante em chegar a um acordo com a Arábia Saudita. Economias que exportam petróleo vão sofrer mais, como Venezuela, Colômbia e Equador.

Minérios também estão indo mal, porque o grande comprador é a China, e até que a China se recupere, a mineração terá dificuldade.
Mas não acho que as commodities agrícolas serão afetadas fortemente por esta crise. Poderá até haver alguma escassez delas.


Como o sr. avalia as medidas do Brasil para reduzir o impacto desta crise?


O Banco Central [brasileiro] adotou as políticas corretas, alinhado ao que a maioria dos bancos centrais pelo mundo tem feito.
 
O que acho interessante é a renda básica emergencial, que, no caso do Brasil, é facilitada por programas antigos de transferência condicional de dinheiro que o país implementou no passado. Creio que é uma excelente resposta, mas sei que ela é custosa, e o Brasil tem problemas fiscais desde antes da crise. O governo estava tentando fazer alguns ajustes fiscais importantes, e as condições fiscais ficarão piores. Mas esse é um ponto de interrogação para o futuro.

A recuperação do Brasil da recessão já estava fraca antes da crise do coronavírus. E, como em todos os países do mundo, essa crise terá um efeito negativo na economia brasileira. As estimativas mais confiáveis sobre o desempenho da economia que vi até o momento são as do Goldman Sachs, que colocam o Brasil numa situação intermediária – não tão ruim como Argentina, Equador e Venezuela, mas pior que Chile, Peru e Colômbia.


E a reação da Colômbia?


No geral, tem sido boa. O Banco Central foi bastante ambicioso para prover liquidez ao mercado, intervieram no mercado de câmbio e reduziram a taxa de juros. Mas a reação do governo foi menor que a necessária. Eles destinaram fundos ao setor de saúde e aumentaram as transferências para os 30% mais pobres da população. Mas faltaram políticas para a população vulnerável que não está entre os mais pobres – na Colômbia os trabalhadores informais e independentes representam 60% do total, e eles não receberam apoio.


Qual o papel dos organismos multilaterais neste momento?


Todos os bancos multilaterais já anunciaram novos programas de empréstimo, e autorizaram linhas de crédito existentes a serem usadas com outros objetivos. Como, por exemplo, usar uma linha de investimentos em educação para o setor da saúde.

A grande questão é se eles terão capital suficiente. Isso é particularmente importante para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), já que o Banco Mundial não é relativamente muito importante na América Latina.

O Fundo Monetário Internacional (FMI) tem diversos desafios, mas já dobrou seus instrumentos de emergência, o que é bom. Porém há diversos outros instrumentos que eles precisam melhorar, como incluir mais países em sua linha flexível de crédito e criar um instrumento de swap. Eu e outros colegas propusemos a emissão de 500 bilhões de dólares em direitos especiais de saque, que tem o apoio da diretora do FMI [Kristalina Georgieva]. Saberemos na próxima semana se essa proposta será aceita.

 Link permanente https://p.dw.com/p/3ahVs

terça-feira, 14 de abril de 2020

Em seu novo livro Toby Muse relata a travessia da droga pela Colômbia




Segui um quilo de cocaína da plantação até as ruas

Em seu novo livro, 'Kilo, Inside the Deadliest Cocaine Cartels', o correspondente de guerra Toby Muse relata a travessia da droga pela Colômbia.


O CAPITÃO MAX PEREZ DA POLÍCIA ANTINARCÓTICOS DA COLÔMBIA NUMA  MISSÃO PARA DESTRUIR PLANTAÇÕES DE COCA NO PAÍS. MOMENTOS DEPOIS,  OS TIROS COMEÇARAM. FOTO: TOBY MUSE.

 


Co-caína. Dito em inglês, cocaine, o próprio nome ecoa Caim, Cain, e marcaria o negócio desde o começo, irmão matando irmão. Um comércio que corrompe países, distorce economias, emprega centenas de milhares, e transforma monstros em multibilionários. A vida na cocaína tem uma energia nervosa de um cassino onde todo mundo continua ganhando dinheiro, sexo está por toda parte, e a qualquer momento, alguém pode se levar e colocar uma bala na sua cabeça. Esse é o acordo com a cocaína e todo mundo sabe.
A droga do glamour. O champanhe dos narcóticos, a droga dos ricos. E daqueles que aspiram ser. Exclusiva e promíscua. Cocaína segue o dinheiro. Ela estava lá para os banqueiros de Nova York e Londres nos anos 1980, para os oligarcas russos dos 1990. Agora os traficantes colombianos se voltaram para os novos empreendedores da China.
E tem mais da droga no mercado que nunca. Você sabe, dá pra sentir. Os EUA encontrou quase 20 toneladas de cocaína em apenas uma operação ano passado, um recorde. A Alemanha relatou o mesmo, a Costa Rica também. Nos Reino Unido, a polícia está apreendendo mais cocaína que nunca.
Como chegamos até aqui? Um processo de paz fracassado entre rebeldes e o governo colombiano levou plantações de coca – o material bruto da cocaína – a decolar. Agora a Colômbia produz mais coca que nunca, mais do que Pablo Escobar poderia sonhar. Então você poderia dizer que a Colômbia falhou com o mundo. E você estaria errado. O mundo falhou com a Colômbia. Nenhum país conseguiu reduzir seriamente sua demanda pela droga. Esse negócio funciona pela demanda dos países mais ricos.
A droga dos ricos, a carreira de glamour, um narcótico da luxúria. Um negócio de dinheiro, sexo e assassinato. Cocaína começa na sujeira. Montanhas intocáveis que nunca deveriam ter sido domesticadas e selvas tenebrosas. Este ônibus vai direto para as partes mais ermas da Colômbia.
A cada passo que damos, outra camada da sociedade fica pra trás. O último hospital, o último supermercado, a última biblioteca. Tudo cai enquanto dirigimos para dentro da selva. As estradas pavimentadas acabam. Agora vamos além de onde as estradas terminam. O último posto de controle do exército, soldados lançando olhares desconfiados. O último vislumbre do estado, o fim do governo. O país Cocaína. Esse é o fim. Esse é o começo do comércio da cocaína. É aqui que o quilo de cocaína nasce. Não há estado funcional, não há emprego fixo. Abandonados por seu governo, muitos agricultores não veem alternativa para as plantações de coca. Na ausência de tudo, você entende por que cocaína.
MARIA É PARTE DE UM EXÉRCITO DE 'RASPACHINES' QUE GANHAM $2,50 PARA CADA 11 QUILOS DE FOLHAS COLHIDAS QUE SÃO TRANSFORMADAS EM COCAÍNA PURA. ENTRE A SUJEIRA E A POBREZA, ESSE É O PRIMEIRO ESTÁGIO DE UM NEGÓCIO MULTIBILIONÁRIO. FOTO: NICOLÓ FILIPPO ROSSO





MUITOS DOS QUE COLHEM COCA REAGEM MAL AO TOQUE DA FOLHA, SUAS MÃOS INCHAM E FICAM COM MANCHAS VERMELHAS. E A COCA CORTA. DEPOIS DE UMA SEMANA, AS MÃOS DOS TRABALHADORES ESTÃO CHEIAS DE CALOS, CICATRIZES E MACHUCADOS. FOTO: NICOLÓ FILIPPO ROSSO



Vinte e cinco trabalhadores andam pelo campo, colhendo coca. Maria sua sob o sol impiedoso, arrancando as folhas das moitas verdes que parecem comuns. É trabalho pesado, mas o único aqui para essa imigrante venezuelana. Maria lembra da vida na Venezuela, de ir dormir com fome, de acordar para ver a mãe chorando. Enquanto sua família perdia peso, ela estava literalmente morrendo de fome quando cruzou a pé a fronteira para a Colômbia. Ela continuou andando e pedindo trabalho até que um fazendeiro concordou e a mandou para o campo de coca. Ela ganha US$ 2,50 [R$ 13] para cada 11 quilos de folhas de coca que colhe. Ela carrega quarenta quilos por essa terra enlameada. Ela entra num “laboratório”, um termo grandioso para um barraco na selva. Pedro recebe as folhas de Maria. Ele vai transformá-las em pasta de coca, um passo antes da cocaína pura. “Isso ajuda a manter as pessoas vivas. Mas ninguém enriquece com isso”, ele diz, apontando para uma tonelada de folhas de coca.
Através dessas florestas tropicais marcham narcomilícias, homens e mulheres pesadamente armados, lutando e morrendo pelo controle da cocaína. Acima no céu, um piloto mantém o helicóptero Blackhawk da polícia bem no alto, para evitar franco-atiradores. Da janela, o capitão Max Perez observa os hectares de coca dessa terra sem lei. O helicóptero aterrissa rápido numa plantação de coca. Os policiais rezam antes de saltar do helicóptero. Rezas de guerra. Eles sabem o que está lá fora: as narcomilícias colocam minas terrestres nos campos de coca. Pegue minha coca e vou te fazer sangrar. A polícia está aqui para destruir a plantação e ir embora antes que a narcomilícia possa contra-atacar. Entre as moitas, Perez escaneia o rosto distorcido da selva, quando os tiros começam e temos que nos abaixar.
Uma cidade celebra outro final de semana de cocaína. Os agricultores venderam sua pasta de coca para as narcomilícias. Agora é hora de bebidas e mulheres. Um bêbado entra cambaleando num salão de sinuca, com uma cerveja na mão e sangue espirrado na camiseta.
“Eles me chamam de 'Facão da Estrada'.”
Por quê? Pergunto.
“Muitas brigas. Na estrada. Com meu facão. Cortei fora o braço de um homem.”
Em seu quarto no bordel acima do salão de sinuca, Rosario pensa em todos os agricultores de coca bêbado com quem ela vai fazer sexo esta noite. Se conseguir oito, ela pode economizar mais para mandar para a filha na Venezuela. Lá fora espreitam as narcomilícias e a próxima troca de tiros nas ruas da cidadezinha é uma questão de dias, ou mesmo horas.

CALMOS VILAREJOS RURAIS SE TORNAM TURBULENTAS CIDADES DA COCA, COM CENAS DE SEXO E ASSASSINATO. A COCAÍNA CAUSA GRANDES ONDAS DE MIGRAÇÃO PELA COLÔMBIA, COM COMERCIANTES E PROSTITUTAS VIAJANDO MUITO QUILÔMETROS, ATRAÍDOS PELO CHEIRO INCONFUNDÍVEL DE AGRICULTORES DE COCA COM DINHEIRO. PROSTITUTAS ALUGAM AVIÕES PARA VIAJAR PARA AS CIDADES MAIS REMORAS NO FUNDO DA SELVA, SABENDO QUE VÃO RECUPERAR O DINHEIRO E MUITO MAIS COM AGRICULTORES BÊBADOS. FOTO: NICOLÓ FILIPPO ROSSO


“Estamos no apocalipse. Tem muito mal no mundo. Os inocentes são enganados, assassinados, estuprados. Países estão em guerra. Mais guerra. Coisas estranhas acontecem que você não pode explicar. É nosso mundo. É o que merecemos... Mas eu não mereço esta vida.”
E a vida passa pelo rosto dela, através de seu corpo. Essa mulher viu mais da humanidade nessa cela medonha que verei em várias vidas.
“Quantos anos você tem?”
“Dezenove.”
Quando narcomilícias colidem, assassinatos explodem como um gêiser. Aqui no município de Tibu no nordeste da Colômbia, o ano em que estive lá vai terminar com uma taxa de homicídio de 240 para cada 100 mil habitantes. Isso não é crime. É uma epidemia. Mas em crueldade e desespero, às vezes a loucura divina emerge e assassinato cria beleza.
No sudoeste, Puerto Berrio fica às margens do rio Magdalena, uma paisagem linda de lendas e mitos. Os antigos deuses andam por essas florestas. Quando a violência explode aqui, assassinos desovam os corpos no rio e eles passam boiando pela cidade. Alguém tomou uma decisão. Ninguém lembra quem, mas uma tradição nasceu. A cidade decidiu pescar os corpos flutuantes e devolvê-los pra terra. E aí – novamente, ninguém sabe quem, por quê, quando – as pessoas de Puerto Berrio coletivamente decidiram começar uma tradição de caridade e solidariedade. Os habitantes começaram a adotar as sepulturas individuais dos desaparecidos. Eles cuidavam das tumbas abandonadas. Em troca, eles rezavam para as almas dos desaparecidos, pedindo favores. E pequenos milagres começaram a acontecer.
Os quilos de cocaína são colocados num caminhão e levados para fora da loucura da selva. Depois de algumas horas, eles são entregues em Medelim e para os traficantes. Techno sombrio toca na boate. Garrafas de uísque caro são entregues de mão em mão, rostos drogados são iluminados pela luz estroboscópica da boate, e a poeira do narcótico mais puro do mundo paira no ar. Uma aura de violência reprimida pulsa aqui, uma mola comprimida, uma cobra pronta para dar o bote. Não há pessoas boas aqui hoje à noite. As namoradas dos traficantes usam vestidos caros colados a seus corpos definidos milimetricamente pelos melhores cirurgiões. As mulheres sorriem, os lábios curvados em sexo e crueldade. Pupilas dilatadas pelas drogas, elas parecem rainhas loucas. 2C-B é o narcótico preferido dos narcos colombianos. 2,5-dimetoxi-4-bromo-feniletilamina. Sintética, essa droga é chamada de “cocaína rosa”. Imagine o barato “Caralho, porra!” da cocaína misturado com uma leve psicodelia do LSD.
O baixo do techno fica mais pesado e os homens dançam como se estivessem trocando socos. A dança dos condenados. Todos sabem que o fim deles está próximo. Prisão, assassinato, extradição para os EUA. Está vindo. Curta a noite porque o amanhã nunca vai chegar: a filosofia de uma vida na cocaína.
Num restaurante chique, Alex senta numa mesa e planeja o futuro. A cocaína flui para o México e Europa. Ele é o que chamam de “Invisível”, um traficante de drogas de alto escalão, aqueles que se vestem como empresários internacionais. A era dos traficantes celebridades – Pablo Escobar, Gilberto Rodriguez Orejuela, Carlos Lehder – esses dias acabaram na Colômbia. Se sua cara aparece na primeira página do jornal, começa a contagem regressiva para o seu fim. Não, o tráfico acontece nas sombras e o dinheiro é lavado através da economia internacional legal. Alex desfruta das riquezas e luxos do tráfico de cocaína. Agora ele pondera com pode deixar a vida na cocaína sem se tornar comida para os lobos.
“Você não pode sair”, diz Alex. “Ninguém acredita que você não vai lidar com as autoridades ou os gringos.” Ele quer ver mais ordem no submundo. Ele tem um plano.
Uma mula de drogas estrangeira entra no aeroporto de Bogotá com quatro quilos de cocaína escondidos em sua pasta. Destino: Londres. A pessoa faz o check in e pega o assento 23C. E talvez um pensamento passe por sua mente: Posso dar meia volta. Ainda tenho tempo. Mas ela continua andando para o portão de embarque.
Homens e mulheres honestos construíram a estrada pela qual a cocaína agora flui. Última parada na Colômbia, a Costa do Pacífico. A pesca predatória deixou boa parte das águas na Colômbia mortas. Daqui, zarpam os famosos narcossubimarinos, embarcações que deslizam sob as ondas, fora os canos solitários que sugam oxigênio e expelem a exaustão. Elegantes e determinados como tubarões, esses narcossubs carregam toneladas de cocaína pura.
Luis é um pescador de 55 anos. Ele viu os peixes desaparecerem nas vastas águas escuras do Pacífico. Luis é analfabeto e não lembra o nome da doença que paralisou a esposa. O remédio é caro, então Luis pegou US$ 1.200 emprestado com agiotas. A condição da esposa melhorou. Agora Luis precisa pagar o empréstimo. Mas o dinheiro não está ali. Os agiotas mandam um lembrete: meia-noite, homens sem misericórdia chutam a porta de seu barraco e colocam uma arma na cabeça de sua mulher. Último aviso. Então, Luis pergunta pelo vilarejo se alguém precisa de uma pessoa para “viajar para o norte”. E sempre alguém precisa. Ele embarca na lancha com dois outros homens e duas toneladas de cocaína pura. Quando revendidas, elas valerão centenas de milhões de dólares.
Escondido a bordo, o quilo corre para o oeste através do Oceano Pacífico, perseguindo um pôr do sol interminável. Essas são as águas mais selvagens e solitárias do planeta, o leste do Oceano Pacífico. Esse é o mundo abaixo, uma paisagem infinita, pontuada por baleias, tubarões e golfinhos. Destino: a fronteira entre Guatemala e México. De lá, o quilo vai para o maior consumidor de cocaína do mundo: os EUA.

A GUARDA COSTEIRA DOS EUA QUEIMA O BARCO DE UM CONTRABANDISTA QUE TINHA TONELADAS DE COCAÍNA A BORDO NO MEIO DO OESTE DO PACÍFICO. FOTO: TOBY MUSE


O maior corredor de cocaína do planeta, o oeste do Pacífico parece o fim do mundo. Longe demais de qualquer terra firme, membros da Guarda Costeira americana se apoiam na beirada do navio e olham para o barco em chamas. Uma hora antes, eles descarregaram toneladas de cocaína do barco dos contrabandistas. O navio deles não tem capacidade para rebocar a embarcação e deixá-la pra trás, um navio fantasma flutuante, pode colocar em perigo o trânsito no oceano. Então eles incendeiam o barco, o mandando para o fundo do mar. O barco em chamas vai afundando, os amarelos e laranjas dançam contra o rico céu azul. Vinte pessoas da tripulação assistem a bela destruição. Nada agrada mais o olho humano que aniquilação. O barco está afundando, e logo será sugado para o fundo do Pacífico, assustando tubarões, baleias e lulas gigantes na descida. Um guarda costeiro estremece. Dá uma sensação ruim, ele diz, ver qualquer barco afundar. A Guarda Costeira está feliz com as toneladas de cocaína que apreenderam naquele dia. Mas todos sabem que tem muito mais por aí.
Há histórias de muitas vidas infundidas na grama de cocaína agora em carreiras na sua frente. Nessa linha branca fantasmagórica, você sente o cheio dos trópicos? O palpitar do sexo? Nesse pó branco morto, você consegue sentir a ganância e traição que atravessam continentes?
Esses homens e mulheres da cocaína? Alguns ainda estão nos campos destruindo coca e apreendendo cocaína em alto-mar. Outros estão em fuga, caçados por inimigos. Alguns estão mortos agora. São finais naturais para a vida na cocaína. E assim continua a guerra às drogas que mata, mutila, e mesmo assim nunca acaba.
Por Toby Muse; Traduzido por Marina Schnoor

Kilo: Inside the Deadliest Cocaine Cartels—from the Jungles to the Streets de Toby Muse saiu pela Harper Collins.
Matéria originalmente publicada na VICE Reino Unido