E tem mais da droga no mercado que
nunca. Você sabe, dá pra sentir. Os EUA encontrou quase 20 toneladas de cocaína
em apenas uma operação ano passado, um recorde. A Alemanha relatou o mesmo, a
Costa Rica também. Nos Reino Unido, a polícia está apreendendo mais cocaína que
nunca.
Como chegamos até aqui? Um processo de
paz fracassado entre rebeldes e o governo colombiano levou plantações de coca –
o material bruto da cocaína – a decolar. Agora a Colômbia produz mais coca que
nunca, mais do que Pablo Escobar poderia sonhar. Então você poderia dizer que a
Colômbia falhou com o mundo. E você estaria errado. O mundo falhou com a
Colômbia. Nenhum país conseguiu reduzir seriamente sua demanda pela droga. Esse
negócio funciona pela demanda dos países mais ricos.
A droga dos ricos, a carreira de
glamour, um narcótico da luxúria. Um negócio de dinheiro, sexo e assassinato.
Cocaína começa na sujeira. Montanhas intocáveis que nunca deveriam ter sido
domesticadas e selvas tenebrosas. Este ônibus vai direto para as partes mais
ermas da Colômbia.
A cada passo que damos, outra camada da
sociedade fica pra trás. O último hospital, o último supermercado, a última
biblioteca. Tudo cai enquanto dirigimos para dentro da selva. As estradas
pavimentadas acabam. Agora vamos além de onde as estradas terminam. O último
posto de controle do exército, soldados lançando olhares desconfiados. O último
vislumbre do estado, o fim do governo. O país Cocaína. Esse é o fim. Esse é o
começo do comércio da cocaína. É aqui que o quilo de cocaína nasce. Não há
estado funcional, não há emprego fixo. Abandonados por seu governo, muitos
agricultores não veem alternativa para as plantações de coca. Na ausência de
tudo, você entende por que cocaína.
MARIA É PARTE DE UM EXÉRCITO DE 'RASPACHINES' QUE GANHAM $2,50 PARA CADA
11 QUILOS DE FOLHAS COLHIDAS QUE SÃO TRANSFORMADAS EM COCAÍNA PURA. ENTRE A
SUJEIRA E A POBREZA, ESSE É O PRIMEIRO ESTÁGIO DE UM NEGÓCIO MULTIBILIONÁRIO.
FOTO: NICOLÓ FILIPPO ROSSO
MUITOS DOS QUE COLHEM COCA REAGEM MAL AO TOQUE DA FOLHA, SUAS MÃOS
INCHAM E FICAM COM MANCHAS VERMELHAS. E A COCA CORTA. DEPOIS DE UMA SEMANA, AS
MÃOS DOS TRABALHADORES ESTÃO CHEIAS DE CALOS, CICATRIZES E MACHUCADOS. FOTO:
NICOLÓ FILIPPO ROSSO
Vinte e cinco trabalhadores andam pelo
campo, colhendo coca. Maria sua sob o sol impiedoso, arrancando as folhas das
moitas verdes que parecem comuns. É trabalho pesado, mas o único aqui para essa
imigrante venezuelana. Maria lembra da vida na Venezuela, de ir dormir com
fome, de acordar para ver a mãe chorando. Enquanto sua família perdia peso, ela
estava literalmente morrendo de fome quando cruzou a pé a fronteira para a
Colômbia. Ela continuou andando e pedindo trabalho até que um fazendeiro
concordou e a mandou para o campo de coca. Ela ganha US$ 2,50 [R$ 13] para cada
11 quilos de folhas de coca que colhe. Ela carrega quarenta quilos por essa
terra enlameada. Ela entra num “laboratório”, um termo grandioso para um
barraco na selva. Pedro recebe as folhas de Maria. Ele vai transformá-las em
pasta de coca, um passo antes da cocaína pura. “Isso ajuda a manter as pessoas
vivas. Mas ninguém enriquece com isso”, ele diz, apontando para uma tonelada de
folhas de coca.
Através dessas florestas tropicais
marcham narcomilícias, homens e mulheres pesadamente armados, lutando e
morrendo pelo controle da cocaína. Acima no céu, um piloto mantém o helicóptero
Blackhawk da polícia bem no alto, para evitar franco-atiradores. Da janela, o
capitão Max Perez observa os hectares de coca dessa terra sem lei. O
helicóptero aterrissa rápido numa plantação de coca. Os policiais rezam antes
de saltar do helicóptero. Rezas de guerra. Eles sabem o que está lá fora: as
narcomilícias colocam minas terrestres nos campos de coca. Pegue minha coca e
vou te fazer sangrar. A polícia está aqui para destruir a plantação e ir embora
antes que a narcomilícia possa contra-atacar. Entre as moitas, Perez escaneia o
rosto distorcido da selva, quando os tiros começam e temos que nos abaixar.
Uma cidade celebra outro final de
semana de cocaína. Os agricultores venderam sua pasta de coca para as
narcomilícias. Agora é hora de bebidas e mulheres. Um bêbado entra cambaleando
num salão de sinuca, com uma cerveja na mão e sangue espirrado na camiseta.
“Eles me chamam de 'Facão da Estrada'.”
Por quê? Pergunto.
“Muitas brigas. Na estrada. Com meu
facão. Cortei fora o braço de um homem.”
Em seu quarto no bordel acima do salão
de sinuca, Rosario pensa em todos os agricultores de coca bêbado com quem ela
vai fazer sexo esta noite. Se conseguir oito, ela pode economizar mais para
mandar para a filha na Venezuela. Lá fora espreitam as narcomilícias e a
próxima troca de tiros nas ruas da cidadezinha é uma questão de dias, ou mesmo
horas.
CALMOS VILAREJOS RURAIS SE TORNAM TURBULENTAS CIDADES DA COCA, COM CENAS
DE SEXO E ASSASSINATO. A COCAÍNA CAUSA GRANDES ONDAS DE MIGRAÇÃO PELA COLÔMBIA,
COM COMERCIANTES E PROSTITUTAS VIAJANDO MUITO QUILÔMETROS, ATRAÍDOS PELO CHEIRO
INCONFUNDÍVEL DE AGRICULTORES DE COCA COM DINHEIRO. PROSTITUTAS ALUGAM AVIÕES
PARA VIAJAR PARA AS CIDADES MAIS REMORAS NO FUNDO DA SELVA, SABENDO QUE VÃO
RECUPERAR O DINHEIRO E MUITO MAIS COM AGRICULTORES BÊBADOS. FOTO: NICOLÓ
FILIPPO ROSSO
“Estamos no apocalipse. Tem muito mal
no mundo. Os inocentes são enganados, assassinados, estuprados. Países estão em
guerra. Mais guerra. Coisas estranhas acontecem que você não pode explicar. É
nosso mundo. É o que merecemos... Mas eu não mereço esta vida.”
E a vida passa pelo rosto dela, através
de seu corpo. Essa mulher viu mais da humanidade nessa cela medonha que verei
em várias vidas.
“Quantos anos você tem?”
“Dezenove.”
Quando narcomilícias colidem,
assassinatos explodem como um gêiser. Aqui no município de Tibu no nordeste da
Colômbia, o ano em que estive lá vai terminar com uma taxa de homicídio de 240
para cada 100 mil habitantes. Isso não é crime. É uma epidemia. Mas em
crueldade e desespero, às vezes a loucura divina emerge e assassinato cria
beleza.
No sudoeste, Puerto Berrio fica às
margens do rio Magdalena, uma paisagem linda de lendas e mitos. Os antigos
deuses andam por essas florestas. Quando a violência explode aqui, assassinos
desovam os corpos no rio e eles passam boiando pela cidade. Alguém tomou uma
decisão. Ninguém lembra quem, mas uma tradição nasceu. A cidade decidiu pescar
os corpos flutuantes e devolvê-los pra terra. E aí – novamente, ninguém sabe
quem, por quê, quando – as pessoas de Puerto Berrio coletivamente decidiram
começar uma tradição de caridade e solidariedade. Os habitantes começaram a
adotar as sepulturas individuais dos desaparecidos. Eles cuidavam das tumbas
abandonadas. Em troca, eles rezavam para as almas dos desaparecidos, pedindo
favores. E pequenos milagres começaram a acontecer.
Os quilos de cocaína são colocados num
caminhão e levados para fora da loucura da selva. Depois de algumas horas, eles
são entregues em Medelim e para os traficantes. Techno sombrio toca na boate.
Garrafas de uísque caro são entregues de mão em mão, rostos drogados são
iluminados pela luz estroboscópica da boate, e a poeira do narcótico mais puro
do mundo paira no ar. Uma aura de violência reprimida pulsa aqui, uma mola
comprimida, uma cobra pronta para dar o bote. Não há pessoas boas aqui hoje à
noite. As namoradas dos traficantes usam vestidos caros colados a seus corpos
definidos milimetricamente pelos melhores cirurgiões. As mulheres sorriem, os
lábios curvados em sexo e crueldade. Pupilas dilatadas pelas drogas, elas
parecem rainhas loucas. 2C-B é o
narcótico preferido dos narcos colombianos.
2,5-dimetoxi-4-bromo-feniletilamina. Sintética, essa droga é chamada de
“cocaína rosa”. Imagine o barato “Caralho, porra!” da cocaína misturado com uma
leve psicodelia do LSD.
O baixo do techno fica mais pesado e os
homens dançam como se estivessem trocando socos. A dança dos condenados. Todos
sabem que o fim deles está próximo. Prisão, assassinato, extradição para os
EUA. Está vindo. Curta a noite porque o amanhã nunca vai chegar: a filosofia de
uma vida na cocaína.
Num restaurante chique, Alex senta numa
mesa e planeja o futuro. A cocaína flui para o México e Europa. Ele é o que
chamam de “Invisível”, um traficante de drogas de alto escalão, aqueles que se
vestem como empresários internacionais. A era dos traficantes celebridades –
Pablo Escobar, Gilberto Rodriguez Orejuela, Carlos Lehder – esses dias acabaram
na Colômbia. Se sua cara aparece na primeira página do jornal, começa a
contagem regressiva para o seu fim. Não, o tráfico acontece nas sombras e o
dinheiro é lavado através da economia internacional legal. Alex desfruta das
riquezas e luxos do tráfico de cocaína. Agora ele pondera com pode deixar a
vida na cocaína sem se tornar comida para os lobos.
“Você não pode sair”, diz Alex.
“Ninguém acredita que você não vai lidar com as autoridades ou os gringos.” Ele
quer ver mais ordem no submundo. Ele tem um plano.
Uma mula de drogas estrangeira entra no
aeroporto de Bogotá com quatro quilos de cocaína escondidos em sua pasta.
Destino: Londres. A pessoa faz o check in e pega o assento 23C. E talvez um
pensamento passe por sua mente: Posso dar meia volta. Ainda tenho tempo. Mas
ela continua andando para o portão de embarque.
Homens e mulheres honestos construíram
a estrada pela qual a cocaína agora flui. Última parada na Colômbia, a Costa do
Pacífico. A pesca predatória deixou boa parte das águas na Colômbia mortas.
Daqui, zarpam os famosos narcossubimarinos, embarcações que deslizam sob as
ondas, fora os canos solitários que sugam oxigênio e expelem a exaustão.
Elegantes e determinados como tubarões, esses narcossubs carregam toneladas de
cocaína pura.
Luis é um pescador de 55 anos. Ele viu
os peixes desaparecerem nas vastas águas escuras do Pacífico. Luis é analfabeto
e não lembra o nome da doença que paralisou a esposa. O remédio é caro, então
Luis pegou US$ 1.200 emprestado com agiotas. A condição da esposa melhorou.
Agora Luis precisa pagar o empréstimo. Mas o dinheiro não está ali. Os agiotas
mandam um lembrete: meia-noite, homens sem misericórdia chutam a porta de seu
barraco e colocam uma arma na cabeça de sua mulher. Último aviso. Então, Luis
pergunta pelo vilarejo se alguém precisa de uma pessoa para “viajar para o
norte”. E sempre alguém precisa. Ele embarca na lancha com dois outros homens e
duas toneladas de cocaína pura. Quando revendidas, elas valerão centenas de
milhões de dólares.
Escondido a bordo, o quilo corre para o
oeste através do Oceano Pacífico, perseguindo um pôr do sol interminável. Essas
são as águas mais selvagens e solitárias do planeta, o leste do Oceano
Pacífico. Esse é o mundo abaixo, uma paisagem infinita, pontuada por baleias,
tubarões e golfinhos. Destino: a fronteira entre Guatemala e México. De lá, o
quilo vai para o maior consumidor de cocaína do mundo: os EUA.
A GUARDA COSTEIRA DOS EUA QUEIMA O BARCO DE UM CONTRABANDISTA QUE TINHA
TONELADAS DE COCAÍNA A BORDO NO MEIO DO OESTE DO PACÍFICO. FOTO: TOBY MUSE
O maior corredor de cocaína do planeta,
o oeste do Pacífico parece o fim do mundo. Longe demais de qualquer terra
firme, membros da Guarda Costeira americana se apoiam na beirada do navio e
olham para o barco em chamas. Uma hora antes, eles descarregaram toneladas de
cocaína do barco dos contrabandistas. O navio deles não tem capacidade para
rebocar a embarcação e deixá-la pra trás, um navio fantasma flutuante, pode
colocar em perigo o trânsito no oceano. Então eles incendeiam o barco, o
mandando para o fundo do mar. O barco em chamas vai afundando, os amarelos e
laranjas dançam contra o rico céu azul. Vinte pessoas da tripulação assistem a
bela destruição. Nada agrada mais o olho humano que aniquilação. O barco está
afundando, e logo será sugado para o fundo do Pacífico, assustando tubarões,
baleias e lulas gigantes na descida. Um guarda costeiro estremece. Dá uma
sensação ruim, ele diz, ver qualquer barco afundar. A Guarda Costeira está
feliz com as toneladas de cocaína que apreenderam naquele dia. Mas todos sabem
que tem muito mais por aí.
Há histórias de muitas vidas infundidas
na grama de cocaína agora em carreiras na sua frente. Nessa linha branca
fantasmagórica, você sente o cheio dos trópicos? O palpitar do sexo? Nesse pó
branco morto, você consegue sentir a ganância e traição que atravessam
continentes?
Esses homens e mulheres da cocaína?
Alguns ainda estão nos campos destruindo coca e apreendendo cocaína em
alto-mar. Outros estão em fuga, caçados por inimigos. Alguns estão mortos
agora. São finais naturais para a vida na cocaína. E assim continua a guerra às
drogas que mata, mutila, e mesmo assim nunca acaba.
Matéria originalmente publicada na VICE Reino Unido
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